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Sou natural de Bom Despacho-MG. (16-7-1935) Bacharel em Letras pela UFMG, com pós-graduação na área de Educação pela PUC de Minas Gerais, além de cursos de Extensão Universitária, em Brasília, na UnB, e na Universidade de Évora, Portugal. Professor e escritor, tenho vários livros publicados, em gêneros diversos: crônica, história, biografia, conto, ensaio.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

UM CARNAVAL DIFERENTE

Jacinto Guerra


Despertou grande interesse entre os alunos da Universidade de Colúmbia, em Washington, a aula de um professor latino-americano sobre o tema Bom Despacho, suas atrações turísticas e sua vida noturna.O leitor que já viajou para estas bandas do Rio São Francisco – nos caminhos de Lagoa da Prata, Santo Antônio do Monte, Moema, Dores do Indaiá e outros lugares – pode estar achando que isto é conversa fiada. Dizem que nenhuma das nossas
cidades tem prestígio nacional. Internacional, então, nem se fala.

Mas é verdade. Quem fez esta conferência de tanto sucesso nos
Estados Unidos foi o Mozart Foschete, assessor da Câmara dos Deputados, em Brasília. Uma testemunha ocular desta história é o pesquisador Edmílson Caminha, que deve ser parente do Pero Vaz de Caminha, escrivão-mor da Descoberta do Brasil.

Como eu ia dizendo, o Caminha, meu novo companheiro de infância, é tão amigo de Bom Despacho que foi descobrir em fins do século XIX, lá em Fortaleza, no Ceará, um poema do José d' Avó Gontijo, príncipe da poesia bondespachense. Mas nem o Foschete nem o Caminha falaram ou escreveram sobre o Carnaval de Bom Despacho, um assunto capaz de despertar a maior curiosidade pelo mundo afora.

O nosso Carnaval é uma festa popular mesmo, como acontece na Bahia, em Pernambuco e no Rio de janeiro. É uma tradição fortemente ligada às nossas raízes municipais e regionais. Tem "caráter muito lúdico e artístico", como lembra a artista plástica Nilce Coutinho. Por sua vez, o Itamar – não o Presidente da República, mas o jornalista Itamar de Oliveira – fez uma
interessante análise do Carnaval bondespachense, numa visão sociológica e política. Com sua autoridade de professora de grande prestígio, Auxiliadora Guerra observa, principalmente, o aspecto educativo e cívico da nossa maior festa popular.

Nestas alturas, acredito que o leitor pode estar desconfiado e curioso. Se for o caso, calma que o desfile das escolas de samba, o caminhão elétrico e a turma do frevo não demoram a surgir na Marquês de Sapucaí, quer dizer, na Rua do Rosário, que hoje tem o nome do Dr. Miguel Gontijo, uma importante figura de nossa História.

Tradição muito antiga, quem abre o desfile principal é sempre um boneco gigante: o Picão Camacho, primeiro homem civilizado a pisar nestas paragens de Minas Gerais. Picão Camacho e os outros bonecos que representam os colonizadores portugueses foram criados e montados por artesãos de Bom Despacho. Eles aprenderam esta arte com bonequeiros do Nordeste.
Depois, sob os aplausos do povo, na Praça da Inconfidência, na Avenida das Palmeiras e na Praça da Matriz, vão chegando os Zé-Pereiras dos bairros e povoados, disputando a honra da melhor apresentação.

Fui conhecer mais de perto o Zé-Pereira com o grande folclorista Luís da Câmara Cascudo, lá de Natal, Rio Grande do Norte. Conhecido no Brasil desde os meados do século XIX, principalmente em Ouro Preto e no Rio de Janeiro, o Zé-Pereira é de origem lusitana, muito popular no Norte de Portugal, justamente a região dos primeiros bondespachenses. Trata-se de um pequeno grupo de foliões que canta e bate o bumbo freneticamente, num ritmo alegre e forte:

"Viva o Zé-Pereira!
que a ninguém faz mal!
Viva o Zé-Pereira!
No dia do Carnaval!"

À frente do grupo, dança um boneco grandalhão: o Zé-Pereira, português típico do interior, boa gente que ajudou a construir o Brasil com muita luta e trabalho. A turma do Zé-Pereira apresenta-se anunciando a chegada do Carnaval, continua nos três dias da festa, e volta às ruas em ocasiões especiais.

Quando o ex-presidente Juscelino Kubitschek visitou o interior de Portugal, recebeu grande homenagem dos Zé- Pereiras de aldeias e cidades da Beira, na região da Serra da Estrela.

Mas voltemos ao Carnaval de rua, em Bom Despacho. No sambódromo da Miguel Gontijo, desfilam escolas de samba e blocos da Cruz do Monte, da Biquinha, da Tabatinga, da Rua da Olaria, do Quenta-Sol. Na Vila Aurora, todo mundo levantou mais cedo para começar a folia. Da Rua do Céu e do Campo de Aviação, desceu gente quase voando de tanto entusiasmo com a festa.

Em cima de um carro alegórico, os foliões do Engenho do Ribeiro vieram ensinando o fabrico da rapadura e da garapa. Trouxeram até um alambique para fazer cachaça na rua, mas desistiram da idéia, para não incentivar o vício da bebida. Por falar em rapadura, os barzinhos da Miguel Gontijo venderam muito aquelas mini-rapaduras do tamanho de uma caixinha de fósforos, lançadas com sucesso em Montes Claros.

Outras alegorias lembravam os garimpos de cristal, a chegada dos
colonos austríacos e alemães, a influência dos negros, dos italianos e dos libaneses na formação da cidade, a nobreza dos espanhóis que vieram para a região; as primeiras cabeças de gado originárias das Ilhas de Cabo Verde, a avicultura, a plantação de laranjas, a indústria de confecções, a siderurgia, a indústria de tecidos, a fabricação de móveis. Fecha-se o desfile com os meios de transporte: um carro-de-bois, todo enfeitado – e gente da roça tocando viola.
Depois, os ferroviários, com a Maria Fumaça apitando. Um carrinho alegórico enguiçou na Rua Vila Rica, perto da Biquinha.
Fico tão emocionado que até me esqueço de muita coisa. O pessoal das empresas de reflorestamento fantasiou-se de árvores com troncos, galhos, folhas e tudo. Atrás do caminhão elétrico vem o povo cantando e dançando. Jovens e velhos, na maior alegria e descontração.

Foi um sucesso danado a turma do frevo, que aprendeu a dançar em Pernambuco. Logo depois vieram os cavaleiros fantasiados, prestando homenagem à cidade de Bonfim, Minas Gerais, onde existe o antigo Carnaval a Cavalo. Foi idéia do Elias Rodrigues, mais conhecido como Nego do Engenho. Como o dono do boi é que pega no chifre, foi o Elias mesmo que ficou à frente da Cavalhada. A coisa foi tão interessante que parecia até uma pequena mostra das Cavalhadas de Pirenópolis, em Goiás, representando as lutas entre cristãos e mouros na Península Ibérica.

Com muito brilho, o povo da Prata fez questão de enriquecer o desfile lembrando os bandeirantes na procura de ouro e outras riquezas. Da Lagoa Verde e da Piraquara vieram as mensagens mais fortes em defesa do meio ambiente. As mulheres mais bonitas desfilaram jogando flores na multidão.

O pessoal do Mato Seco botou mais lenha na fogueira e a folia esquentou mesmo. Mas é importante registrar que se verifica, com êxito, um grande esforço das autoridades para evitar qualquer excesso ou perturbação da ordem. Neste calor, você merece uma cerveja, mas uma espécie de Lei Seca é obedecida por quase todos. O pessoal toma um refrigerante, e olhe lá... Tem gente que prefere um copo de leite, suco de maracujá ou chá de erva cidreira.
Por estas e outras razões, até o bispo de Luz e os padres de Bom Despacho viram com simpatia o nosso Carnaval.

De manhã, um turista que estava modernamente arranchado no Hotel JB foi procurar palmito na Rua do Palmital e ficou a ver navios, porque lá não tem mais palmito nenhum. Outros buscaram a sorte jogando moedas de dólar na fonte da Biquinha. Depois visitaram o Museu do Soldado e ficaram encantados com tudo que viram na Vila Militar, que parece uma antiga cidadezinha inglesa, cercada de pequenas muralhas. Ficaram admirados com o Monumento ao Garimpeiro e sua pedra de cristal brilhando ao sol. Gostaram, também, dos Moinhos de Vento na Praça São José e, principalmente, do Centro Dr. Juca de Comércio, Lazer e Cultura, no antigo Cine Regina.

Com a paisagem dominada pelo esplendor da manhã, foram ao
miradouro da Cruz do Monte – e de lá viram as portas do sol abertas sobre a cidade e os seus arredores cheios de verde dos quintais e das fazendas. No meio da tarde, foram para o lpê Campestre Clube, um orgulho da cidade e da região.

O que se faz em Bom Despacho é a experiência de um Carnaval
moderno, voltado para os valores mais nobres do nosso povo. Foi tudo estudado, planejado, discutido ao longo de meses na Fundação Cultural, nas escolas, na Prefeitura e até na Associação Comercial e nas assembléias dos bairros.

Na Câmara Municipal, o assunto foi objeto de muita discussão,
com os debates mais acalorados entre os vereadores do PT (Partido dos Trabalhadores) e do PFL (Partido da Frente Liberal). Um ilustre parlamentar municipal defendeu a realização de um plebiscito para consultar se o povo queria ou não a realização do Carnaval com dinheiro da Prefeitura. Aproveitando o gancho da discussão, um vereador formado em Letras recomendou, na tribuna, a leitura do conto O Plebiscito, de Artur Azevedo, escritor maranhense que foi muito popular no Brasil inteiro.

Na Praça da Matriz, houve uma discussão danada a respeito da
possível participação dos congadeiros. Mas prevaleceu o bom-senso. O problema foi resolvido por uma comissão de alto nível, formada pelo padre Vicente Rodrigues, o Dunga, capitão do Reinado, e um representante dos dançadores. Congado ou Reinado é festa religiosa, enquanto o Carnaval é profano. Os congadeiros resolveram que só dançam na Festa do Rosário e no Festival do Folclore.

A Capoeira, mistura de dança e de luta, fez muito sucesso no eixo
Praça da Matriz – Rua Miguel Gontijo – Avenida das Palmeiras. O vigário proibiu, com toda razão, qualquer dança profana no adro da belíssima Igreja de Nossa Senhora do Bom Despacho. Mas permite a Dança do Rei Davi, de inspiração bíblica. Alguns paroquianos querem também a Dança de São Gonçalo, uma idéia que trouxeram lá de Amarante, em Portugal. Tudo isto, em épocas especiais, fora do Carnaval.

A Catira foi outro sucesso, com o alegre sapateado dos catireiros de Martinho Campos, todos homens, como determina a tradição aqui no Alto São Francisco. Mas quando as feministas souberam que em Goiás as mulheres dançam Catira, foi um deus-nos-acuda. Protestaram e garantiram participar efazer bonito no próximo Carnaval.

Em Bom Despacho, quem comanda a folia é o prefeito Célio Luquine, que lembra o Gustavo Krause quando governava o Recife e fazia questão de participar do Carnaval de rua. A Comissão de Frente tem gente de peso: Zuca Lobato, Sandra Gontijo e Tadeu de Araújo Teixeira, além da Sebastiana da Tabatinga, representando o povão.

No desfile da Miguel Gontijo, apareceram críticas ao Governo, com o teatro de mamulengo em rápidas apresentações, satirizando o abandono da educação, o custo de vida, a falta de segurança e os outros problemas sociais. Um pequeno grupo de moças e rapazes fantasiados de figuras da nossa História chamaram a atenção para a memória regional e defenderam a instituição do Museu da Cidade no castelinho da Rua Faustino Teixeira, onde funciona o escritório da Cemig (Cia. Energética de Minas Gerais). Este prédio histórico fica bem no coração da cidade. Lembra a Torre de Belém em Lisboa. O novo museu será um moderno espaço destinado à educação, à ciência e à cultura.

A novidade mais criativa desse ano foi o aparecimento do Bloco do
Sebo, formado por escritores, jornalistas e leitores. Vem gente de Belo Horizonte, de Brasília, de Divinópolis e até do Rio de Janeiro para entrar e se divertir no Sebo. O nome vem do tipo de livraria que vende livros velhos, raros e usados. Com brincadeira e folia, o pessoal quer chamar a atenção para a Biblioteca Municipal e a Feira do Livro. O mote dos foliões foi uma frase do poeta Affonso Romano de Santanna: "Somente através do livro e da leitura chegaremos um dia ao Primeiro Mundo". Os imortais da Academia
Bondespachense de Letras quase morreram de emoção e de alegria, quando viram tanta gente aplaudindo os escritores, a leitura e os livros.

Neste Carnaval, quase ninguém ficou dentro de casa. Só os moradores do elegante Bairro São José, antigo Arraial dos Lobos, construído nos terrenos do Calais. Em seus palacetes, bangalôs e casas nobres, acompanharam a festa pela TV de última geração, com antena parabólica e tudo, usando o computador, o telefone celular e outras maravilhas eletrônicas da indústria japonesa.

Na periferia da cidade, onde a vida é muito melhor do que nas favelas do Rio de Janeiro, até quem não saiu de casa divertiu-se a valer, ouvindo rádio e dançando, inclusive o samba no pé. Na sacada do Hotel Glória e nas janelas da Rua da Liberdade, muita gente foi se divertir com a barulhada alegre dos Zé-Pereiras. A TV Bom Despacho e as emissoras de rádio transmitiram tudo, via satélite, para o país inteiro. Entre os turistas que participaram da festa na rua, encontramos gente de Fortaleza; de Imperatriz, no Maranhão; de Curitiba; de Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, e até dos Estados Unidos e da Suíça.

O nosso carnaval já foi cantado em prosa e verso pelos melhores
escritores da terra. Alírio Silva está escrevendo um conto sobre o assunto e a Sônia Queiroz segue a mesma trilha, nos caminhos do ensaio e da poesia.

Na Praça São José, na Rua dos Operários e no Largo do São Pedro,
a Prefeitura mandou instalar telões de televisão para o povo. Lá a multidão aplaudiu Daniela Mercury dançando e cantando em cima de um trio elétrico, em Salvador, e na maior felicidade acompanhou o Salgueiro:

"Peguei um lta no Norte
e fui pro Rio morar.
Adeus, meu pai, minha mãe,
Adeus, Belém do Pará.”

Por hoje chega, que já é Quarta-Feira de Cinzas. Fica tudo para o
próximo Carnaval. Em Bom Despacho, é claro.

Jacinto Guerra, mineiro de Bom Despacho e morador de Brasília, é autor de vários livros, entre os quais “O gato de Curitiba – crônicas de viagem e outras histórias” (Brasília, 2004, 2ª edição) – Prêmio BDMG Cultural de Literatura/Banco do Desenvolvimento de Minas Gerais.

Um comentário:

  1. ótimo texto, carnaval dos melhores, que inveja de Bom Despacho(inveja da boa, claro)! Mineiro é mesmo especial, bem dizem que mineiro toma a banana do macaco, deixa o macaco satisfeito, agradecido e devendo favor; só um povo assim pode ter imaginação para este carnaval. Abraço fraterno

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